
domingo, 30 de agosto de 2009
O Rio, a água, a doença e o viajante

terça-feira, 18 de agosto de 2009
O grupo de pesquisa Rio Jaguaribe: História, memória, natureza e cultura tem a intenção de construir uma reflexão histórica que se conecta com história, memória e paisagem em face das múltiplas articulações do Rio Jaguaribe com a História do Ceará. É uma tentativa de refletir historicamente a diversidade de experiências históricas que navegam por estas águas; dos que deslizaram sobre o Rio a partir das mais variadas motivações e, sobretudo, pela diversidade de modos de vida das populações que acompanham o Rio em toda a sua extensão. Esta multiplicidade será buscada mediante as inúmeras interfaces da vida e história dos povos com o Rio bem como do Rio com as gentes.
O projeto de pesquisa ora em curso tem a intenção de ser interdisciplinar e se realiza com base no grupo de pesquisa cadastrado no diretório dos grupos de pesquisa do CNPQ, coordenado pelos professores Dra.Kênia Sousa Rios, Dra.Adelaide Gonçalves e Dr. Eurípedes Funes com a participação de professores e alunos do curso de História, Biologia, e Jornalismo. O Grupo de pesquisa tem como tema central o Rio Jaguaribe nas suas variadas formas e possibilidades de leitura entre História e Meio Ambiente.
A partir dos debates, levantamento de fontes, sua catalogação e estudo, o grupo começa a se orientar para variados desdobramentos científicos mediante o tema central, ou seja, o rio Jaguaribe entre a História, memória, natureza e cultura. Desse modo, temáticas como o processo de ocupação do Ceará, a cultura agrícola das populações ribeirinhas, ritos agrários, religiosidades, memória e tradição oral, alimentação ribeirinha, políticas de ação contra a seca, o Rio e a seca, imagens do Rio, literatura de viajantes, os códigos de postura e disciplinarização da água, as doenças do Vale do Jaguaribe, Comissões Científicas, intelectuais cearenses e o rio, a história social de outros rios do Ceará, a luta pela água e a luta pela terra, entre outros, tem direcionado o olhar dos participantes desse projeto de pesquisa.
Está dito que o Jaguaribe é um dos maiores rios secos do mundo. Por outro lado, existem populações do Vale que vivem o drama da enchente ocasionada pela sangria do Rio. Nesse sentido, vale refletir sobre as articulações do Jaguaribe entre a água em excesso e a seca. Como se estabelece a relação homem/natureza nas margens desse território aqüífero. Os vários registros de enchentes ao longo de toda a região do Jaguaribe desvenda um Rio que cria desassossego na vida dos homens convencidos de que a natureza está sob controle. Mas nesses dias molhados ou secos, as populações ribeirinhas (re)criam suas vidas em face do movimento das águas pela abundância ou pela escassez.
Vale perguntar como o movimento do Rio afirma a vida em terra firme. Quais as estratégias de luta e sobrevivência criadas para viver e conviver às margens do Rio? E, sobretudo, como estas experiências são traduzidas na construção de memórias orais, escritas, imagéticas, poéticas entre outras formas de composição destas narrativas textuais.
O Rio
O Rio Jaguaribe percorre o Ceará em mais de
O Jaguaribe faz parte de uma memória imagem do Ceará. Mesmo as pessoas que nunca trafegaram ou viram o Jaguaribe, guardam uma certa lembrança em face de sua presença na música, poesia, literatura e tradição oral sobre o sertão cearense.
Navegar pela história do rio Jaguaribe implica em romper com paradigmas tradicionais da historicidade do homem e pensar na história da terra – da natureza, tornando necessário alargar os referenciais do tempo, e as marcas das temporalidades, para além dos milhares de ano da cristandade, chegando ao período das eras geológicas em busca da ancestralidade da Pangéia, tempo de uma história pagã, onde no “principio era o caos”.
O viajante/historiador municia seu barco com uma gama significativa de inquietações, tendo à frente de seu leme as reflexões sobre natureza e cultura, adentrando em um campo amplo de possibilidades que se abrem para pensar a relação homem e meio ambiente, foco central de uma história ambiental. Uma viagem onde os olhos de lince devem estar atentos aos sinais das transformações da natureza, não decorrentes apenas da ação humana mas da própria natureza, como por exemplo, o avanço das dunas, lento e contínuo, sobre os manguezais no estuário do rio Jaguaribe.
Um olhar que fica mais aguçado se protegido por lentes caras ao campo da biologia, da ecologia, à geografia física, à geomorfologia e à paleontologia, entre outros campos do conhecimento com os quais a história pouco tem dialogado. Desse modo, fica melhor ver e ler as paisagens em suas diversas temporalidades, os espaços ecológicos e suas especificidades sócio-culturais, ao longo da história e das margens do rio desde as suas nascentes nos cafundós do sertão dos Inhamuns.
O Jaguaribe é rio mais extenso do Ceará, sua bacia cobre aproximadamente 70% de seu território, e de suma importância na história cearense. Já foi o maior rio perene do mundo. Mas o que era o Jaguaribe antes de nascer? Ou melhor, quando nasceu? Qual era a paisagem desta região, hoje configurada como ribeira do Jaguaribe, nas remotas eras terciária e quartenária? Num período de transgressão onde as alterações climáticas e geológicas afetaram este cenário fazendo retroceder os mares interiores, surgir a caatinga, alterando o cenário natural, em especial, o sertão cearense, “uma planície gnêissica, inclinada levemente para o litoral, rodeada de um anfiteatro de serras capeada de arenitos”, algumas delas serras “graníticas que melhor resistiram à raspagem erosiva.”[2]. Planície cortada pelo rio Jaguaribe, uma artéria que faz pulsar o semi-árido nordestino, alimentado por veias capilares – seus afluentes -, que secavam, alagavam e fertilizavam a terra ao prazer da natureza.
A ambiência do litoral cearense é marcado por falésias, dunas e manguezais principalmente nos estuários de seus rios mais importantes: Acaraú, Mundaú, Ceará e o Jaguaribe, que nasce no que há de mais seco no semi-árido brasileiro, o sertão dos inhamuns. Rios percebidos como “caminhos naturais” para o gado e seus criadores. Uma concepção determinista que via os “caminhos”, mas não o seu cenário. Uma natureza multifacetada, habitada por diversas espécies vegetais, animais, homens e forças ocultas – os encantados.
É no campo da história social e ambiental que se ampliam as possibilidades de romper com a percepção dicotômica entre cultura e natureza, paisagens artificiais e as ditas naturais e ter como foco as relações e inter-relações complexas entre as sociedades e naturezas.
Interessa, nesta pesquisa, saber como as correntezas do Jaguaribe se movimentam fazendo constituir uma vida que foi historicamente partilhada pelos mais diferentes grupos, povos e populações que, em diferentes momentos históricos se recostaram às suas águas para sugerir diferentes modos de sobrevivência e luta.
Desde a chegada do europeu que o Jaguaribe participa de uma escrita sobre a vida nestas bandas de cá. Os colonizadores deixaram seus registros sobre conflitos de terra, populações indígenas, ocupação do território e guerras. Os caminhos de água também foram cuidadosamente narrados pelos viajantes que passaram pelo Jaguaribe.
O viajante inglês Henry Korster, em sua passagem pelo Ceará, vai encontrando vilarejos e povoados que enxerga a partir do Rio. “A cidade de Ico, uma das principais do interior da Província do Ceará, está situada em uma planície a leste, que toma aqui o nome de Rio Salgado”.[3]. Korster segue mapeando as cidades a partir do Jaguaribe com seus tantos nomes e personalidades:
Na Vila de Lavras da Mangabeira, situada às margens do Rio Salgado (...) não encontrei nada de novo, senão uma espécie de Mikania pendente dos ramos de uma Mimosa. Achei também umas conchas no leito do Rio. Entre este lugar e Lavra o rio corre muito tortuoso, e como ora se achava quase seco, notei que os moradores haviam plantado nele melões, melancias, abóbora, etc.[4]
O olhar do viajante assevera a subjetividade do Rio que algumas vezes apresenta um comportamento mais agitado. É também nestas descrições que Korster sugere o entendimento de que a secura do Rio favorece o plantio de algumas culturas. A cheia e a seca garantem, de modos diferentes, a vida nas suas margens. Outros viajantes e tropeiros que navegaram ou margearam o Rio também deixaram impressões valiosas para o estudo que interessa a esse grupo de pesquisa. Interessa investigar como os viajantes, engenheiros, naturalistas ou cientistas constróem uma imagem do Rio Jaguaribe e das populações situadas á sua margem.
Como, afinal,essa natureza é apresentada e representada pelos estudiosos a partir de um certo entendimento sobre natureza nos séculos XVIII,XIX e XX. O Rio Jaguaribe e todo o potencial agropecuário as suas margens estiveram muitas vezes entre as principais atrações do Ceará quando exposto nas famosas “Exposições Universais”. Não havendo muito da indústria e tecnologia para apresentar, nossos intelectuais e cientistas se esmeravam na apresentação da natureza cearense e suas promessas de futuro[5].
O Jaguaribe é, sem dúvida, uma artéria que pulsa o sangue de homens e mulheres que vivem ladeando suas águas. Olhares e leituras afirmam a força do Rio ainda que estejam separadas por centenas de anos. O estudo do Jaguaribe recupera uma reflexão ampla sobre as possibilidades de vida entre natureza e cultura. Desse modo, esta pesquisa tentará navegar nas águas do Rio através dos mais variados afluentes históricos. Tentaremos perscrutar o Rio por um caminho que entra e sai de suas águas, perseguindo as conexões das populações ribeirinhas com o Rio desde os registros mais remotos, ou melhor, o Rio também será estudado a partir de sua importância para a ocupação do sertão nordestino, em particular os ermos que viriam se constituir na província do Ceará. [6]
Os rios, suas margens e as pastagens do entorno constituíam lugares privilegiados para a pesca, caça e pequenos cultivos desenvolvidos pelas várias etnias que ocupavam os vales verdes na caatinga, em especial aquele formado pela bacia do rio Jaguaribe.
A relação homem natureza torna-se mais agressiva, implicando alterações rápidas e significativas após a chegada do colonizador europeu que vai reivindicar terras para criar. Nada mais justo, ao espírito empreendedor que estas terras fossem aquelas dos vales verdes e férteis, “própria para plantar e colocar gado”. Momentos de redefinição do uso e valor da terra. Pastagens naturais para o gado e não mais para a fauna natural, implicando no domínio sobre a natureza e o semelhante. De acordo com Tristão Alencar Araripe:
O gênio civilizador da população ocidental da Europa não devia parar, e ficar ali contido, somente porque os aborígines americanos deviam ter caça, pesca e frutos abundantes, prodigalizados pela fertilidade natural. A terra é domínio do homem, e uma raça menos favorecida de dotes morais e intelectuais, não devia impedir o desenvolvimento de outra raça, mas ativa e capaz de vencer a natureza. [7].
Desse modo, esse estudo busca também compreender o processo de ocupação, tendo a relação homem natureza como fator explicador de uma nova configuração territorial; da estruturação das relações sociais de trabalho e de como se amalgamou a cultura sertaneja. Um espaço onde, segundo oficio da presidente da Província, de 27 de dezembro de 1861, “Os índios do Ceará encontram-se confundidos na massa geral da população civilizada, sendo incorporada aos próprios nacionais a parte devoluta dos seus terrenos”. [8]
É preciso conhecer as várias territorialidades indígenas, em particular no vale do Jaguaribe, que foram (re)ocupadas por aqueles vindos de fora, os primeiros sesmeiros que sobrepuseram suas propriedades às dos nativos, alterando o cenário paisagístico, iniciando um processo de degradação ambiental que transcenderia os vales dos rios, atingiria o ecossistema da caatinga e das “zonas de refrigério”. Palco de disputas de terras entre nativos, entre gentios e o colonizador, e contendas entre estes seja pela disputa de propriedades, pelo poder local e ou pelos códigos de honra que marcaram a sociedade sertaneja, sempre associado ao atraso e à violência.
Neste rápido esboço de possibilidades, vimos que o Rio Jaguaribe pode ser lido através de muitas sugestões interpretativas. Cientistas das mais variadas ciências, humanas ou não, poderão tecer suas análises, mas ao historiador cabe a tarefa de escrever uma História para o Rio. Uma história que dê conta dos trabalhos da memória e das formas históricas de vida humana dentro e fora de suas águas. Como sugere Lucien Febvre em seu estudo sobre o Reno:
ao historiador cabe lê e escutar as vozes retumbantes do presente que cobrem ou reforçam as vozes discordantes do passado(...)Tentar discernir alguns planos gerais do papel, do valor e, por assim dizer, do significado do Reno nas diversas épocas do passado.[9]
E acrescentaríamos, as significações para o presente e o futuro.
Semelhante ao Reno, o rio Jaguaribe propõe reflexões sobre a problemática das fronteiras. As várias cidades que existem ao longo do seu curso definem limites e territórios que se desenham na relação com o Rio. Em que condições políticas, sociais e culturais o Jaguaribe é batizado por Trussu? O que ocorre de diferente em suas águas para que de repente passe a ser o Salgado? Que boas histórias devem compor as explicações do trecho conhecido como Riacho do Sangue? O que muda em sua personalidade quando é chamado de Banabuiú? Que diferentes relações são (re)partidas entre o Figueiredo e o Palhano? Que relações políticas, econômicas e culturais definem o alto, o médio e o baixo Jaguaribe e, afinal, que identidades compõem o Vale do Jaguaribe?
As muitas caras do Jaguaribe devem ser interpretadas, neste estudo, mediante um olhar que reflete o fazer e o desfazer das fronteiras no curso do Rio e, afinal, como estes limites se diluem nas correntezas da vida, memória e tradição oral elaboradas pelas gentes que, de modos diversos, conhecem a força destas águas.
Como produtores de uma História Social do Rio, pretendemos perseguir o Jaguaribe como um objeto de estudo que se constitui pelas várias conexões entre natureza e cultura, paisagem e memória, e este livrinho tem a intenção de divulgar as primeiras notas de estudo realizada pelos membros do grupo respeitando as diferentes etapas em que se encontram os estudantes envolvidos. É mais uma tentativa de afirmar a idéia de que “ “navegar é preciso, viver...”
[1] RAULINO, Francisco Wilson. Jaguaribe, o Vale das Violas. Morada Nova, 1998.p.62
[2] LEME, Alberto Betim Paes. História Física da Terra. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1943
[3] KOSTER, Henry. Viagem ao Nordeste do Brasil. Fortaleza: editora ABC, 2000. p.87
[4] Idem. P.89
[5] Sobrinho, Thomaz Pompeu. Catálogo preparatório do Ceará na Exposição de Chicago (1893). In: Revista Documentos do Arquivo Publico do Estado do Ceará. Fortaleza: 2005.
[6] ABREU, J. Capistrano. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo:EdUSP, 1988.
[7] ARARIPE, Tristão Alencar. História da Província do Ceará – desde os tempos primitivos até 1850. 2ª edição, Coleção História e Cultura do Instituto do Ceará. Fortaleza, 1958. p. 114
[8] Arquivo Público do estado do Ceará. Fundo Secretaria do Governo Provincial, Série – Ofícios, Oficio ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, 27/12/1861.
[9] FEBVRE, Lucien. O Reno. História, mito e realidades, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.65